Memória Escrita

Ana Alice Francisquetti

Memória Escrita

 

Uma vez escrito, um discurso sai a vagar por toda parte, não só entre os conhecedores, mas também entre os que nada entendem, e nunca se pode dizer para quem serve e para quem não.

Platão

 

Estou ameaçada por falhas de memória, o que torna impossível resgatar o que foi perdido sem oferecer uma nova interpretação ao que se deseja recuperar. O ato de recordar é uma forma de trazer o passado à tona, transformando a memória em uma presença viva. A escrita desempenha um papel fundamental nesse processo, permitindo-me reunir imagens dispersas em minha mente, criando uma memória repleta de lembranças significativas.

Na década de 1940, destacam-se as pioneiras da arteterapia nos Estados Unidos: Margareth Naumburg, que abordou a arteterapia sob uma perspectiva psicanalítica, e sua irmã, Florence Cane, dedicada à arte-educação. No Brasil, a Dra. Nise da Silveira promoveu a interação entre arte, psicologia e clínica, fundando, em 1946, as oficinas de terapia ocupacional no ateliê de pintura do Centro Psiquiátrico Pedro II, localizado no Engenho de Dentro. Em São Paulo, Osório Cesar desenvolveu trabalhos artísticos no Hospital do Juquery, e em Recife, Ulysses Pernambuco, médico psiquiatra, investigou as interações entre arte e psiquiatria. Esses pioneiros foram movidos pela paixão pela arte e por uma preocupação com os problemas sociais e políticos, fundamentais para o processo de humanização da psiquiatria.

Minha trajetória é contada a partir da formação em arteterapia, sob a orientação da professora Dra. Selma Ciornai, doutora em psicologia clínica, gestalt-terapeuta e arteterapeuta, a quem considero minha grande mentora. Ela é reconhecida por sua contribuição como fundadora do Departamento de Arteterapia do Instituto Sedes Sapientiae. Selma convidou o Dr. João Frayze Pereira, professor de Psicologia da Arte na USP, para integrar o corpo docente.

Outra figura notável na arteterapia brasileira é Ângela Filippini, do Rio de Janeiro, diretora da Clínica Pomar. Cito ainda outros profissionais relevantes para o desenvolvimento da arteterapia no Brasil, como Margarida de Carvalho, Joya Eliezer e diversos representantes da nova geração.

A história da arteterapia no Brasil é marcada por um longo percurso de lutas, desafios e conquistas. Atualmente, observa-se um novo mapeamento do campo, com a presença de várias associações regionais vinculadas à União Brasileira de Associações de Arteterapia.

Minha formação se origina nas artes plásticas, especificamente na gravura, e na educação. Trabalhei por aproximadamente 30 anos no Curso de Arteterapia do Instituto Sedes Sapientiae, que se fundamenta na reflexão teórica, em ateliês vivenciais e na prática supervisionada. Participei do curso de pós-graduação em Psicologia da Arte na USP e de cursos na área da Medicina, voltados para reabilitação, com mestres internacionais do corpo clínico da AACD e outros especialistas do Instituto Sedes Sapientiae. Minha trajetória foi essencialmente institucional, abrangendo a Associação de Assistência à Criança e ao Adulto Deficiente, o Instituto Sedes Sapientiae, o Hospital Sírio Libanês, o Museu MUBE e o curso de Terapias Integrativas na UNIFESP. Além disso, atendi pacientes com diferentes patologias em meu ateliê.

Atuei como supervisora e orientadora de trabalhos acadêmicos de alunos do Instituto Sedes Sapientiae e de residentes em Arte-Reabilitação do Hospital da Criança e Adulto Deficiente, colaborando com a comissão de estágio e pesquisa. Além de lecionar sobre as patologias atendidas e apresentar estudos de caso, sempre valorizei a orientação de trabalhos e dissertações de conclusão de curso.

Em 2001, participei da criação do curso de formação em Arteterapia em Porto Alegre, em parceria com o Instituto da Família, onde ministrei aulas e supervisão, enfatizando a importância do conhecimento teórico e clínico sobre as patologias atendidas, bem como o uso de recursos expressivos adaptados a cada paciente, incluindo crianças, adolescentes e adultos.

A Arte-Reabilitação deve articular-se não apenas com os conceitos e práticas da neurologia, mas também com diferentes referenciais teóricos que fundamentam as relações entre arte e cérebro. A reabilitação visa ao desenvolvimento de habilidades, à melhoria funcional e à qualidade de vida, à integração familiar, profissional e social, ao exercício da cidadania e à promoção da autonomia dos pacientes. Diversas organizações civis e governamentais, por meio da Liga das Nações Unidas em Genebra (ONU), têm implementado propostas de intervenção específicas em reabilitação.

Criação do Setor de Arte-Reabilitação

O setor de Arte-Reabilitação surgiu do meu desejo de ensinar arte a pessoas com necessidades especiais, sustentado pela minha experiência como artista plástica e educadora. Fui incentivada pelo diretor clínico da AACD, que reconhecia a importância de ampliar o conhecimento cultural dos pacientes, tornando a AACD pioneira nesse trabalho no Brasil, a partir de 1985. Recordo com imensa alegria o dia em que o Dr. Ivan Ferraretto, então diretor clínico da instituição, me convidou para criar e organizar o setor de Arte-Reabilitação. Sou eternamente grata a ele pelos ensinamentos e pela oportunidade de desenvolver este trabalho. O reconhecimento oficial da Arte-Reabilitação concretizou meu sonho de transformar a arte em um importante instrumento auxiliar na reabilitação. Essa inauguração superou minhas expectativas, impulsionada pela criação de novas relações com a equipe multidisciplinar, o corpo clínico e o contexto histórico da instituição.

O Dr. Ivan Ferraretto definiu a função da reabilitação pela arte de maneira clara: “Reabilitação não é somente ensinar a andar! É també, dar força ao espírito e a mentee da criança deficiente para enfrentar os obstáculos maiones”. O excercício da arte espontânea fortalece a liberação das emoções e a formação da personalidade de cada criança. Vivenciamos essa experiência transformadora no setor de Arte-Reabilitação da AACD.

A arte-reabilitação busca recuperar e estimular funções neurológicas prejudicadas por lesões, além de criar um programa de estimulação cognitiva efetiva, utilizando recursos de pintura, desenho, argila, construção da linguagem oral e escrita, contação de histórias, dramatização, teatro e música. O objetivo é encontrar elementos de motivação para aqueles que sofreram traumas.

A prática da arte-reabilitação exige um profundo conhecimento das linguagens simbólicas, das formas e da utilização de materiais, bem como uma compreensão das transformações em níveis psíquicos e neurológicos, além das patologias atendidas. A contribuição de diversos neurologistas foi fundamental para o entendimento dos processos de arte-reabilitação, fundamentada nas interações entre arte e cérebro. As formulações teóricas de Alexander (1902-1977) e Lev Vygotsky (1896-1934) contribuíram significativamente para a compreensão do desenvolvimento cognitivo.

Adotamos a abordagem fenomenológica de Merleau-Ponty como método, realizando um estudo aprofundado das relações entre arte e cérebro. Elaboramos um protocolo de atendimento para crianças e adultos, iniciando a avaliação dos pacientes com um pedido para que desenhassem sua imagem corporal, seguido pelo desenho da família. O desenho da imagem corporal pode servir como uma ferramenta útil na detecção de distúrbios neurológicos. O desenho da família é uma técnica projetiva gráfica que permite ao paciente expressar suas atitudes e sentimento em relação à família. Após essa avaliação inicial, analisamos funções cognitivas como atenção, memória, linguagem, funções visuoperceptivas, funções espaciais, funções executivas e comportamentais, estabelecendo metas de tratamento. Utilizamos diversas técnicas expressivas para promover a evolução psíquica, cognitiva, sensitiva e motora dos pacientes.

Realizei estudos com diferentes patologias, em colaboração com a Dra. Milene Ferreira, fisiatra da instituição. Juntas, realizamos um estudo comparativo entre o desenho da imagem corporal e o tipo de lesão neurológica, utilizando tomografia segundo a escala de Oxfordshire. Esta escala define os territórios vasculares em comparação com os desenhos da autoimagem realizados por pacientes com AVC isquêmico. Constatamos que os recursos expressivos representados nos desenhos da autoimagem, quando comparados ao tipo de lesão, podem fornecer informações valiosas sobre aspectos menos visíveis, não verbalizados pelos pacientes. Por exemplo, Gardner (1999, p. 272) analisou os desenhos do rosto do pintor alemão Anton Raderscheidt, após um acidente vascular (hemisfério direito com negligência visual do lado esquerdo), observando desenhos desconectados, que refletem negligência e diferenças em relação ao período anterior ao acidente. Outros fatores que interferem na reabilitação de portadores de acidente vascular cerebral incluem afasias (dificuldade de comunicação verbal), agnosias (incapacidade de reconhecer objetos, embora a capacidade visual persista) e apraxias (inabilidade de realizar movimentos intencionais de forma clara).

Todos os experimentos devem ser adaptados aos níveis de gravidade das lesões. Cada sessão terapêutica é uma nova aventura, uma descoberta tanto para o paciente quanto para o terapeuta, e os planejamentos podem ser revistos diante de novas possibilidades terapêuticas ou da resistência do cliente. Bloqueios e resistências são comuns em um ambiente hospitalar de reabilitação, onde os pacientes se encontram extremamente fragilizados e buscam compreender sua nova forma de vida.

Novas possibilidades de atendimento arteterapêutico surgem com o apoio da terapeuta ocupacional, que contribui para a adaptação cuidadosa de novos materiais. Também atendi pacientes com traumatismo cranioencefálico, tanto crianças quanto adultas, com o objetivo de melhorar as funções cognitivas, atencionais, visuoconstrutivas, mnemônicas e executivas. Ao longo dos anos, acompanhei pacientes com diferentes graus de traumatismo; esse atendimento exige do arte-reabilitador amor, dedicação e um profundo conhecimento das patologias. Utilizamos a Escala Rancho dos Amigos, desenvolvida pelo Rancho Los Amigos Medical Center, em Downey, Califórnia. Os primeiros atendimentos eram realizados no leito hospitalar e, posteriormente, no Ateliê Terapêutico. A aplicação da escala é pertinente em lesões axonais difusas, geralmente resultantes de aceleração/desaceleração do crânio após acidentes de carro. Quando as lesões são localizadas, como por facadas ou projéteis, utilizamos o recurso do TCE (continuum das terapias expressivas).

Outras patologias que atendemos incluem paralisia cerebral, lesão medular, doenças neuromusculares, dor crônica e amputações. Para cada uma dessas condições, foi necessário criar métodos específicos para estimular o processo criativo. O fundamental era que cada paciente descobrisse seu potencial criativo. No ateliê terapêutico, os pacientes interagem não apenas com os materiais artísticos, mas também com o ser humano como um todo. É um espaço de criação, ação e integração. Embora as condições físicas e mentais nem sempre possam ser alteradas, a arte ajuda os indivíduos a transcenderem o sofrimento.

A relação da sociedade com pessoas com deficiência tem se modificado ao longo do tempo. A presença do diferente em termos éticos, raciais, sexuais, culturais, corporais ou religiosos provoca uma variedade de reações. O papel da equipe é fundamental no processo de inclusão, pois é ela que estimula as pessoas com deficiência a acreditarem em sua capacidade de superar limitações, aprendendo, produzindo e reconhecendo seu potencial.

Neste contexto, faço uma declaração de amor e paixão à arteterapia, à arte- reabilitação e à arte maior da gravura em metal. Meu pensamento remete a Pontalis (1986, p. 72): “É preciso ter muitos lugares em si para preservar a possibilidade de ser-se”. Nesse exercício de vida, aprendi, sofri, criei, inventei, experimentei vulnerabilidade, chorei, sorri, tive esperança e, acima de tudo, acreditei. Passei por uma análise psicanalítica, aprendendo a me ouvir.

Fui convidada a colaborar na organização de vários congressos nacionais e internacionais de arteterapia e medicina da reabilitação. Organizei diversas exposições de arte dos pacientes da AACD em galerias e museus do Estado de São Paulo. A alegria dos  pacientes ao afirmarem “Eu fiz” e a satisfação de familiares e do corpo clínico foram estímulos para novas apresentações, ajudando a legitimar a arte-reabilitação.

Por meio do projeto TELETON (Brasil, Chile e México), divulgamos os princípios de nosso trabalho à comunidade, contribuindo para a conscientização das necessidades e direitos das pessoas com deficiência. Em um momento significativo, Tania Freire inaugurou a Pós-Graduação em Arte-Reabilitação, trazendo novas reflexões e opções éticas e espirituais para a nova geração de arte-reabilitadores.

Gravura presente na arte contemporânea

Realizo gravuras e desenvolvo obras utilizando a técnica da gravura em metal, onde crio sonhos e fantasias, expressando desvaneios na chapa de cobre. A arte, para mim, é um meio de libertação. Os limites tradicionais dessa técnica são superados, e novas abordagens abrem um vasto campo de possibilidades artísticas. Participo de exposições individuais e coletivas, tanto no Brasil quanto no exterior, e atualmente estou realizando pesquisas com novos materiais.

Recebi diversas premiações e tenho obras no acervo de importantes instituições, como o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), a Pinacoteca do Estado de São Paulo, o Museu de Arte Contemporânea de São Paulo e a Prefeitura de Belém do Pará, entre outras.

Considerando a complexidade da reabilitação e a arte como forma de expressão, busquei expandir os limites da arte e promover a aceitação das diversas circunstâncias da vida. Continuo a lutar contra o preconceito, empenhando-me em explorar as possibilidades criativas das pessoas com necessidades especiais e persisto em realizar esforços de adentrar as possibilidades criativas da pessoa com necessidades especiais. Considero como missão de vida, apesar dos limites impostos pela deficiência física ou mental, que a vontade e a persistência são fatores importantes para o atendimento em Arteterapia e Arte-Reabilitação.

 

 

Bibliografia

Francisquetti, A. A., Ferraretto, I.. (2016). Arte-Reabilitação: um caminho inovador na área da Arteterapia. Organização de Ana Alice Francisquetti. Rio de Janeiro: Walk Editora, p. 34.

Pontalis, J.B. (1988). O Amor do Começo. Rio de Janeiro: Globo.

Cómo citar este artículo: 

López Crook, I. (2024). Consideraciones sobre el uso de la escritura en terapia narrativa. Arteterapia. Proceso Creativo y Transformación, 12.